Um projeto produzido por financistas, para atender os desejos do mercado financeiro. Essa é a “Reforma Administrativa” do Governo Bolsonaro, cujos contornos iniciais foram apresentados na última quinta-feira (3). Repleta de lacunas e sem combater privilégios reais, a PEC 32/2020 é um atestado do desconhecimento da equipe econômica sobre a realidade do serviço público.

Entre as inúmeras tolices defendidas pela equipe econômica, salta aos olhos a proposta de formalizar a divisão do funcionalismo em castas. Seriam basicamente duas: a primeira, composta pelas carreiras típicas de estado, merecedoras (segundo os critérios do próprio Governo) de estabilidade. Quem não se enquadrasse nessa condição seria relegado a um segundo grupo, cuja desnecessidade poderia ser declarada a qualquer tempo: são os servidores contratados por prazo indeterminado.

Ocorre que, na prática, o trabalho desenvolvido pelos dois grupos se complementa, muitas vezes de forma indivisível. É fácil notar tal fenômeno na Polícia Federal. Ao prestar suporte para a carreira policial, servidores administrativos não raro têm acesso a dados sensíveis de segurança pública e de operações confidenciais. Por isso mesmo, tais postos não podem ser terceirizados, tampouco preenchidos por apaniguados, como parece desejar o Governo.

A questão é que governos vem e vão. Perduram as instituições, compostas de servidores públicos. A estabilidade concedida pela Constituição é uma garantia de que esses profissionais servirão não aos governantes da vez, mas sim à sociedade. Sem ela, os servidores ficarão mais expostos a pressões externas.

Soma-se isso ao anacronismo de ignorar as especificidades da atividade administrativa de cada órgão, enxergando seus servidores como integrantes de um único e homogêneo “carreirão”. Basta um mínimo de imaginação para prever falhas nesse retorno ao passado. Seria comum, por exemplo, remanejar servidores envolvidos em operações anticorrupção para órgãos investigados e vice-versa. Um prato cheio para políticos corruptos, não é mesmo?

É importante deixar claro: a estabilidade não existe para proteger o mau servidor — contra esses, basta regulamentar mecanismos objetivos de avaliação de desempenho que podem levar à demissão do profissional improdutivo, algo já previsto na Constituição —, ela existe para proteger a população, garantindo servidores comprometidos com o interesse público em primeiro lugar.

Também é falaciosa a desculpa de que o fim da estabilidade possibilitaria economia aos cofres públicos, pois jamais existirá atividade fim sem suporte especializado. Na prática, os servidores estáveis apenas dariam lugar a indicados políticos, o que, é óbvio, não é eficiente nem econômico.

A estabilidade é um dos pilares para um serviço público forte e imune a interesses políticos. Acabar com ela fará com que o Estado brasileiro desmorone sobre seus cidadãos. Menos saúde, menos educação, menos segurança, menos justiça. Será que é isso mesmo o que o povo brasileiro quer?