Estive em Pacaraima-RR, fronteira com a Venezuela, por 60 dias. De antemão, esclareço que retornei para Brasília na véspera do conflito que houve na cidade, noticiado em todos os jornais. Embora não tenha presenciado os fatos, posso dizer que não me surpreendi com o que aconteceu, visto que a cidade não tem condições de abrigar o crescente número de pessoas nas ruas.

Dos quase 14 anos que tenho na Polícia Federal, digo com toda certeza que essa foi a missão mais difícil. A infraestrutura da cidade é precária, há pouco ou quase nada para fazer e tudo é muito caro. Quem gosta de alimentação saudável e balanceada pode preparar o bolso: frutas são escassas e o preço é lá em cima. Maças são vendidas por R$ 1,00 a unidade. Peras, R$ 3,50. Preço melhor, só mesmo o da banana.

Almoçar também não é barato: o gasto nunca fica abaixo de R$ 15,00 e o cardápio não tem grande variedade — um composto de arroz, feijão, carne, farofa e macarrão. Dependendo do estabelecimento, é possível encontrar uma salada de repolho ou cenoura ralada acompanhada de tomate. E só.

Fui para a missão como voluntário, com o intuito de ajuda humanitária. Foi gratificante poder ter ajudado de alguma forma e por isso digo que a missão valeu a pena. Vi muitas coisas, ajudei pessoas e testemunhei a capacidade do ser humano de destruir uma sociedade inteira, obrigando milhares de pessoas a fugir de suas casas.

No período em que estive por lá, trabalhei no que chamávamos de “protocolo de refúgio e residência temporária” e na identificação papiloscópica, fazendo a coleta de digitais e de fotos que seriam inseridas no sistema AFIS. Nesses dois meses, atendi muita gente humilde e analfabeta, mas também médicos, dentistas, engenheiros, professores universitários, bioquímicos, psicólogos, advogados, auditores fiscais, militares, policiais, servidores públicos, etc. Ao que parece, a crise não fez distinção de classes e todos vieram em busca de melhores condições. Cheguei a atender um major do exército venezuelano que me garantiu receber um soldo mensal de R$ 65,00.

No dia a dia, um dos problemas que enfrentávamos era a contaminação de água e comida. Em alguns casos, colegas tiveram de deixar o trabalho e ir ao hospital de campanha do Exército Brasileiro para tomar soro. Mesmo os militares sofriam com as contaminações. Sobre isso, algumas sugestões àqueles que ainda irão até lá: optem por água mineral ou usem o hipoclorito que é distribuído pelo Ministério da Saúde; procurem comer em locais seguros; usem repelente, tanto para o corpo como aqueles que são plugados nas tomadas, para afugentar os pernilongos. Levem este último na bagagem, pois não é vendido na cidade.

Enxergo o trabalho realizado pela Polícia Federal na região como de fiscalização e controle migratório, atribuições realizadas por servidores administrativos na prática, mas que até hoje não foram colocadas no papel, uma regulamentação que deveria ter acontecido há muito tempo. Mas, infelizmente, como meus colegas bem sabem, somos preteridos por nosso próprio órgão e tratados como servidores de quinta categoria. Visto a camisa do órgão, mas a recíproca não é verdadeira.

É um trabalho administrativo de fato, mas uma reserva de mercado atrapalha nossa atuação. Trata-se da pesquisa de nomes no sistema SINAPSE, cujo acesso é restrito à classe policial. Tal sistema faz uma busca global e indexada do nome do imigrante, tarefa que todo servidor administrativo precisa realizar incontáveis vezes ao dia, dependendo, para tanto, da ajuda de um policial.

No meu entender, por sermos servidores do órgão e por precisarmos acessar o sistema para desempenhar nosso trabalho, o órgão deveria nos dar acesso a ele. É falso dizer que se trata de uma questão de segurança: as pesquisas são registradas no nome de quem as fez. Por isso, não vejo problema em conceder o acesso a todos, assim como não será problema punir quem usar de maneira incorreta. Temos acesso a outros sistemas e não há notícias de desvios de finalidade distintos daqueles que já foram cometidos por maus policiais.  Mas como eu disse, há a reserva de mercado, e não creio que isso vá mudar.

Outro ponto que gostaria de abordar é o que chamo de “identidade visual”. Quando você chega na base, de longe vê os militares, com seus uniformes camuflados; o pessoal da Acnur, que não abre mão do azul tradicional da ONU, enquanto o da OIM ostenta o azul marinho do órgão; os servidores da Anvisa também utilizam uniforme próprio; e os da Cruz Vermelha, logicamente, ostentam o símbolo que dá nome à instituição.

Há ainda uns pouquíssimos sujeitos de blusa preta, com brasão no peito: os policiais federais.  E os administrativos da PF? Somos quaisquer uns ali, pois não temos uma identidade visual. Entendo que, neste tipo de operação, também tínhamos de ser facilmente reconhecidos pelos demais órgãos. Mas, infelizmente, não há interesse de normatizar o uso de uma simples camiseta que todo servidor ou organismo tem. Será que Anvisa, Acnur, EB, OIM e todos os outros é que estão errados?

Outro ponto que gostaria de abordar é a necessidade de liberar o porte de arma para o servidor administrativo que tenha a necessidade. Devo começar dizendo que, por razões pessoais, não gosto de armas de fogo e sou contra o porte irrestrito. Entretanto, existem situações em que o servidor merece ter a OPÇÃO de se defender.

Falo com conhecimento de causa, afinal, nos 60 dias em que trabalhei na imigração, atendi a inúmeras pessoas necessitadas e, também, pessoas suspeitas. A cidade é pequena e havia pontos de grande aglomeração de pessoas desocupadas, onde tínhamos que passar para chegar ao hotel. Muitas vezes fui cumprimentado por gente de quem não me lembrava, mas que jurava ter sido atendido por mim. Eles não entendiam que eu era “apenas” um administrativo. Sempre se dirigiam a mim como “federal”, algo que me incomodava bastante.

Importante ressaltar que, embora nada tenha acontecido conosco, observamos a violência na cidade crescer, com aumento nos casos de furto, tráfico e prostituição.  Uma brasileira chegou a sofrer uma tentativa de estupro na principal rua da cidade durante o dia — o molestador se aproveitou da chuva que caia naquele momento! Houve tentativa de furto de peças de carros que estavam no pátio da delegacia da Polícia Civil, frustrada pelos agentes de plantão.

Neste sentido, agradeço a Deus por nada ter me acontecido. Mas até quando vamos ter de contar com a sorte? Somos um órgão de segurança pública. É fato que a criminalidade só aumenta em nosso país. É fato que o bandido não diferencia administrativo de policial. Para quem é de fora, somos todos federais! Tratamento diferenciado, só dentro do órgão.

Queremos fazer nosso melhor, mas para isso somos muitas vezes expostos a riscos em nossas lotações ou missões em cidades pequenas, às vezes pelo simples fato de entrarmos nas dependências do órgão. Sequer existe um telefone da PF para ligarmos para pedir ajuda quando o risco for relacionado a nossa atividade profissional, afinal não trabalhamos em uma farmácia ou supermercado, e sim na polícia. Caso existisse, não sei se funcionaria, tendo em vista que, por conta dos desvios de função, o efetivo policial é insuficiente na ponta. Sei que poderia contar com os amigos que fiz na delegacia de Pacaraima, mas não há a formalização do auxílio. Dependemos da boa vontade dos colegas dos locais onde trabalhamos.

Estamos jogados à nossa própria sorte. Preteridos e renegados! Como já disse, todo servidor é devidamente responsabilizado por seus erros, mesmo assim, preferem nos submeter ao risco do que conceder o porte de arma a quem apresenta boas justificativas para o pedido. Por que não exigir o que se exige de policiais e outros servidores que fazem jus ao porte? Quem fizer mau uso, que responda criminal, civil e administrativamente. A Polícia Federal não tem capacidade investigativa para tanto? Este país não pune quem age de forma errada? Não há Judiciário neste país?

Sinceramente, sinto-me um filho bastardo desde pouco tempo depois que cheguei ao órgão. Não lhe dão o porte e ainda lhe proíbem de realizar a prática desportiva. Melhor seria normatizar: “além de não poder se defender, você não pode correr do bandido”. Vejo a preocupação justificada dos policiais diante da violência crescente, mas por que nossas preocupações são ignoradas? Será que não trabalhamos no mesmo órgão? Será que nas fotos e vídeos que os bandidos fazem dos policiais nunca vai figurar um administrativo? Juro: não ambiciono poder de polícia judiciária no meu cargo, mas sei que deveria ter mais prerrogativas e direitos do que nos são dados.

Peço perdão pelo longo texto e agradeço ao SinpecPF pelo trabalho que tem prestado, apesar de saber que é tudo em vão. Não há interesse de mudar nossa realidade. Em 14 anos, vi vários dirigentes assumirem e deixarem o comando do órgão, sem nada mudar. Há sempre uma desculpa, mesmo que não faça sentido. Esse ano é a política: por conta das eleições, tudo vai ficar como está, inclusive o que só depende do órgão e não tem impacto financeiro. Ano que vem, o problema será o novo governo. No ano seguinte, será a defasagem dos salários dos policiais, quando seremos novamente preteridos por sermos o lado mais frágil da corda. A verdade é que, ou o comando não tem forças para batalhar em prol das demandas justas e reserva energias para lutar em causa própria, ou a situação atual é conveniente.

Por fim, reafirmo que fui como voluntário para a Missão Acolhida, que foi difícil, mas muito gratificante pelo lado humanitário. Fiz muitos amigos; fui bem recebido por TODOS os colegas da delegacia de Pacaraima; vi todos, independentemente do cargo, sendo PF e dando o suor pela corporação; vi que, em missões como essa na fronteira a diferença entre policiais e administrativos fica tênue e as funções se misturam; vi colegas unidos e trabalhando em equipe, como não se vê nos grandes centros. Creio ser um trabalho humanitário e eminentemente administrativo, mas acho que muitos deveriam participar para saber o verdadeiro significado dos termos “órgão” e “equipe”.

Paulo Murilo, Agente Administrativo

Foto de capa: Boris Heger/Nações Unidas