Inquérito apura se pilotos do Legacy seriam os responsáveis pela morte dos 155 ocupantes do avião da Gol

A Superintendência da Polícia Federal no Mato Grosso abriu ontem inquérito para apurar se o piloto Joe Lepore e o co-piloto Jan Paladino, que estavam no comando do Legacy que colidiu com o Boeing 737-800 da Gol, seriam responsáveis pelo acidente que levou à morte de 155 pessoas, previsto no artigo 121 do Código Penal. Como profissionais habilitados para conduzir a aeronave, os dois tinham conhecimento que poderiam colocar vidas em perigo, mas não teriam tomado os cuidados necessários.

Até o final do inquérito, a PF estudará se enquadra Lepore na modalidade de homicídio culposo (sem intenção de matar), punido com até três anos de detenção. Se ficar comprovado que o acidente ocorreu em decorrência da inobservância de regra técnica da profissão, a pena será aumentada em um terço. E a situação dele pode se agravar se ficar comprovada o dolo eventual, que se aplica a quem sabia dos riscos de produzir o resultado (no caso, o acidente) e mesmo assim não os evitou.

Numa das linhas de investigação, a PF investigará a suspeita de que Joe Lepore e o co-piloto Jan Paladino teriam desligado o equipamento anticolisão da aeronave, o chamado transponder. O procedimento de desconectar o equipamento está fora dos procedimentos normais da aviação civil.

Nos dois inquéritos instaurados, as polícias têm a informação de que o jato Legacy estava a 37 mil pés, a mesma altitude do Boeing da Gol. Os planos de vôos das duas aeronaves autorizavam altitudes diferentes: 36 mil pés para o jato executivo e 41 mil pés para o outro avião. No caso do jatinho da ExcelAire, a torre teria autorizado a subida, de acordo com os depoimentos prestados pelos dois pilotos à Polícia Civil matogrossense.

Código Penal

A PF também vai investigar se o comandante do Legacy incorreu no artigo 261 do Código Penal, que define os crimes contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo. A lei prevê pena de dois a cinco anos para quem “expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia”. O inquérito, que ficará sob a responsabilidade do delegado Roberto Sayão Dias, tem prazo de 30 dias, prorrogáveis por mais 30, se a Justiça Federal, a pedido da PF, julgar isso necessário.

No mais grave acidente da história do Brasil, ocorrido na sexta-feira, 155 pessoas que viajavam no Boeing morreram. Os cinco passageiros e os dois pilotos do Legacy saíram ilesos. No sábado, a Polícia Civil do Mato Grosso começou a apurar a responsabilidade pelo acidente, mas o procurador da República Thiago Lemos de Andrade entendeu, na terça-feira, que o caso é de competência federal e encaminhou ofício à PF, pedindo que o departamento entre no caso.

A PF vai agir em cooperação com a Polícia Civil de Mato Grosso, que também abriu inquérito para apurar o caso e já reuniu dados sobre o acidente, entre eles os depoimentos do comandante Joe Lepore e também pelo co-piloto Jan Paladino. O delegado Roberto Sayão Dias e mais dois auxiliares deverão vir a Brasília até o fim da semana para reunir mais informações junto a outros órgãos federais, como a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a Aeronáutica.

FAA: não há registro

A Agência Federal de Administração (FAA), órgão americano de aviação civil, informou à Agência Estado, que os americanos Joseph Lepore, responsável pelo Legacy que colidiu na sexta-feira passada com o Boeing da Gol, não tem habilitação para pilotar aviões da Embraer. A informação é do porta-voz da FAA, Les Dorr. A empresa de táxi aéreo ExcelAire Service informou que tanto Lepore quanto Paladino têm licença de pilotos de vôos comerciais e ambos estão habilitados para comandar aeronaves Embraer.

Segundo os registros da FAA, Lepore tem o chamado type rating, tipo de habilitação exigida pelo regulamento de aviação americano para aeronaves Cessna e Gulfstream. Só Paladino, co-piloto do Legacy, possui a habilitação para Embraer. Mas a legislação americana exige tal certificação do piloto. “Normalmente, o piloto que detém a type rating estaria no comando da aeronave”, explicou Dorr.

O porta-voz informou que existe a possibilidade de o piloto ter obtido a habilitação de Embraer “muito recentemente”, não constando ainda no registro da FAA. Ambos têm licença como pilotos de transporte aéreo, que seria o mais alto grau de qualificação que um piloto pode obter, exigido para capitão de vôos. Mas, no caso do Legacy, o piloto deve seguir o regulamento, que exige a habilitação específica. 

 

Quem autorizou o jato a voar a 37 mil pés?

O jato Legacy e o Boeing 737-800 da Gol jamais poderiam ter sido autorizados a voar na mesma altitude, mesmo que temporariamente, caso regras básicas da avião civil tivessem sido seguidas pelos controladores de vôo do Cindacta. A análise é de pilotos comerciais ouvidos pelo Correio e que acreditam que erro de comunicação entre os centros de tráfego aéreo de Brasília e Manaus pode ter sido decisivo para o trágico fim do vôo 1907. Segundo os comandantes, não haveria problema algum de o Legacy estar voando a 37 mil pés — mesmo a rota prevista sendo de 36 mil pés — desde que fosse seguida uma regra simples da aviação: a reserva de altitude. Esse procedimento impediria que o Boeing estivesse na mesma altura do jato, independentemente de problemas nos rádios dos controladores ou das aeronaves.

Tecnicamente, o jato deveria estar em uma altura de vôo como os 36 mil pés previstos no plano de vôo original, já que ele seguia do Sul para o Norte do país. A 37 mil pés, seria como se o avião estivesse na contra-mão da rota. No entanto, as mudanças de altitude são possíveis desde que autorizadas pelas torres de controle. Fontes informaram que o piloto do Legacy teria pedido autorização para usar a altitude de 37 mil pés tão logo levantou vôo do aeroporto de São José dos Campos (SP) aos operadores do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego (Cindacta) 1, responsável pelo tráfego aéreo no Centro-Oeste e Sudeste do país. Essa autorização teria sido concedida, com a ressalva de que o piloto voltasse para 36 mil pés na entrada da rota de Brasília para Manaus.

No entanto, esse não é o procedimento padrão. Caso o operador tenha mesmo autorizado a subida para 37 mil pés do jato, essa via deveria ser reservada para toda a viagem do Legacy até Manaus dentro de um procedimento de segurança. Os pilotos que fazem esse trecho contam que a regra, em um caso desses, seria o operador do Cindacta 1 (Brasília) entrar em contato com o controle de Manaus (Cindacta 4) e avisar que o nível de 37 mil pés estaria reservado para a subida do Legacy. Mas não foi isso que ocorreu.

Como a trajetória dos aviões da Gol e do Legacy teria que passar pelo controle tanto do Cindacta 1 quanto do 4, é improvável que os dois centros de tráfego não tivessem os planos de vôo completos das duas aeronaves. As fontes ouvidas pelo Correio acreditam que, ao consultar o projeto de percurso da aeronave da Gol e ver que a altitude prevista era de 41 mil pés, o controlador de Brasília autorizou o subida do Legacy a 37 mil pés tendo em vista que a via estaria livre.

Porém, é uma praxe dos pilotos ir ganhando altitude aos poucos quando estão no comando de aviões comerciais cheios de passageiros. É provável que o comandante do Boeing da Gol estivesse a 37 mil pés exatamente por conta dessa rotina de subir aos poucos até atingir o nível máximo de altitude prevista. Essa prática tem relação com o consumo de combustível da aeronave e com o desempenho em vôo. Se a via de 37 mil pés tivesse sido reservada, o avião da Gol só poderia usar a faixa de 37 mil pés nesse movimento de subida, como uma transição para a próxima altitude. Se o Boeing estava de fato autorizado a fazer o percurso inteiro a 37 mil pés, ao contrário dos 41 mil previstos, a falha no controle seria incontestável.

Transponder

Os próprios pilotos de aviação civil consultados admitem que o colega do Legacy foi imprudente, caso se confirme que ele desligou o transponder — radio-transmissor que mostra o posicionamento com precisão do avião para o radar de controle. Esse procedimento teria o objetivo de fazer a aeronave “sumir” do radar, provavelmente para ganhar altitude e testar o jato em seu primeiro vôo efetivo. O desligamento do transponder é proibido pelas regras da avião civil, por ser um importante equipamento de segurança. Essa ação do piloto foi fatal para o Boeing da Gol, ao cegar também o sistema anti-colisão da aeronave que transportava 155 pessoas.

Esse equipamento, chamado de Traffic Alert and Collision Avoidance System (TCAS), tvem o poder de fazer o avião desviar automaticamente de outro nos casos de rota de colisão. Mas, para isso, é preciso que o transponder da outra aeronave esteja ligado para que o sistema reconheça o risco. Com o equipamento desconectado, o Legacy não teria sido reconhecido pelo TCAS do Boeing como um avião em rota de colisão. Além de não desviar, não teria emitido nenhum aviso ao piloto da Gol.

Marcelo Rocha

Correio Braziliense