Defesa pode recorrer de sentença, que põe fim a quase 13 meses de julgamento tumultuado; execução, na forca, não foi marcada

Ditador que governou o Iraque entre 1979 e 2003 foi considerado culpado do massacre de 148 xiitas no povoado de Dujail em 1982

Um ano e 15 dias após o início de seu julgamento pela morte de 148 xiitas em 1982, o ex-ditador Saddam Hussein, 69, foi condenado ontem à forca pelo tribunal iraquiano que julga os crimes cometidos por seu regime nos 24 anos que esteve no poder. A sentença se refere à ordem do então ditador para matar homens e adolescentes no povoado xiita de Dujail, onde ele sofrera uma tentativa de assassinato. A defesa deve recorrer (leia texto abaixo).

“Vida longa ao povo! Vida longa à nação árabe! Morte a nossos inimigos”, bradou Saddam ao ouvir a sentença lida pelo juiz-chefe, Raouf Rasheed Abdul Rahman, que tentou inutilmente acalmá-lo antes de mandar retirá-lo da corte, na Zona Verde, em Bagdá. “Abaixo os espiões”, continuou, dedo em riste. “Deus é grande.”

Durante o longo julgamento, dezenas de testemunhas depuseram sobre execuções sumárias e também sobre a prisão e tortura de famílias inteiras, além da expulsão dos xiitas de suas casas -crimes pelos quais o ex-ditador recebeu penas que somam 27 anos de prisão.

Com Saddam foram condenados à morte seu meio-irmão Barzam Ibrahim al Tikriti, chefe da polícia secreta do regime, e Awad al Bandar, que dirigia o tribunal revolucionário, incumbido de emitir as sentenças. Taha Yassin Ramadan, vice-presidente sob Saddam, recebeu prisão perpétua, e três dirigentes locais do partido Baath à época, 15 anos de prisão. Um quarto foi absolvido por falta de provas.

Paralelamente, Saddam é julgado desde agosto pela morte de dezenas de milhares de curdos nos anos 80, e a acusação reúne provas sobre outros sete crimes (veja quadro ao lado).

Julgamento conturbado A sentença, anunciada pela junta de cinco juízes responsável pelo tribunal, põe fim a um julgamento que se arrastou por quase 13 meses e foi marcado pelo assassinato de três advogados de defesa, a troca do juiz-chefe, sucessivos adiamentos e interrupções e, sobretudo, uma intensa cobertura da mídia -que repetiu à exaustão desde as imagens do ex-ditador abatido e sujo após ser encontrado num buraco por soldados dos EUA em dezembro de 2003 até as do Saddam desafiador discutindo com juízes no tribunal.

Mas não está claro, ainda, se a execução do homem acusado de massacrar centenas de milhares -se levada a cabo- será pública ou poderá ser filmada.

Como era de se esperar eclodiram manifestações de júbilo em áreas predominantemente xiitas em Bagdá e no sul do país, e protestos em regiões dominadas pelos sunitas, no centro e norte do Iraque. Em Dujail, 50 km ao norte de Bagdá, a população foi às ruas celebrar e queimar imagens do ex-ditador.

Facção minoritária no islamismo mas majoritária no Iraque, onde perfazem cerca de 60% da população, os xiitas foram duramente reprimidos por Saddam, um sunita. Os iraquianos de etnia curda, 15% do país, também foram alvo da mão de ferro do ex-ditador -embora tenham gozado de relativa autonomia nos últimos anos.

“Este é um veredicto contra toda uma era de sombras sem igual na história do Iraque”, declarou o premiê iraquiano, Nuri al Maliki. Com o país mergulhado na violência sectária, Maliki, um xiita, ainda afirmou que espera que a sentença “desestimule a insurgência sunita”.

Já o chefe da defesa, Khalil al Dulaimi, disse que Saddam pede aos iraquianos que abandonem a violência sectária e não se vinguem dos americanos: “Sua mensagem é de perdão”.

Recurso pode adiar execução ou convertê-la em prisão perpétuaEntre a sentença de ontem e o enforcamento do ex-ditador Saddam Hussein há o recurso a uma instância superior que pode retardar a execução de sete meses a um ano ou até transformá-la em prisão perpétua.

Raed Juhi, juiz encarregado das investigações, disse ao jornal britânico “The Guardian” que não há prazo para que o recurso seja julgado. O único dispositivo da lei que criou o tribunal é o que obriga a defesa a contestar a sentença duas semanas após a publicação.

A contestação será feita à Corte de Apelação, de nove membros, que julgará se ocorreram erros de procedimento. Ela poderá ouvir testemunhas.

A lei em vigor durante a ditadura permitia que o chefe de Estado comutasse a pena de morte em prisão perpétua. O dispositivo foi suprimido do decreto que criou, sob tutela americana, o tribunal especial que ontem deu o seu veredicto.

O atual presidente iraquiano, o curdo Jalal Talabani, disse se opor à execução do ex-ditador e que se recusaria a promulgar a sentença para seu enforcamento. Afirmou, no entanto, que, se confirmada em última instância, ele delegaria a promulgação da sentença a um adjunto.

Caso seja executado, e se for para aplicar a lei da deposta ditadura ainda em vigor, a forca seria armada dentro de uma prisão. Familiares e advogados assistiriam o ato.

O procurador que chefia as acusações contra Saddam, Jaafar Moussawi, lembrou aos jornalistas que outra condenação à morte pode aguardar Saddam no caso de Anfal, com a morte de curdos, inclusive por meio de armas químicas.

Tribunal foi instituído pelos EUA O tribunal especial penal que julgou Saddam Hussein foi criado em 2003 por decreto do então administrador americano no Iraque, Paul Bremer, especialmente para julgar os crimes referentes ao regime do ex-ditador e de seu partido, o Baath.

O iraquiano Salem Chalabi foi designado para pôr o tribunal em movimento, escolher seus funcionários, oficiais de justiça, juízes e magistrados -tudo pago pelos EUA, a um custo de US$ 140 milhões.

O painel de cinco juízes que acompanhavam as audiências foi treinado pelos americanos, mas o julgamento seguiu os preceitos legais iraquianos. Não foi instituído um júri.

A população seguiu em peso, pela TV, as audiências; porém, eram transmitidas com um atraso de 20 minutos para que eventuais bravatas de Saddam pudessem ser censuradas.

Ao contrário da maioria dos tribunais internacionais, Saddam foi julgado por seus próprios compatriotas, o que levantou críticas sobre a possibilidade de que viesse a ter um processo imparcial.

O assassinato de três advogados de defesa de Saddam, a fuga de um quarto, a substituição do juiz que liderava o julgamento no processo e a intimidação de testemunhas também suscitaram críticas.

Folha de S. Paulo