Lei dispensa investigação da vida criminal dos servidores que cuidarão das penitenciárias construídas para presos perigosos. Sindicância é exigida para PMs, policiais civis, agentes da PF e de presídios estaduais

Uma brecha na legislação pode minar a segurança máxima dos presídios federais. O governo federal cuidou com esmero da tecnologia e do material para a construção das unidades, mas não teve o mesmo rigor na hora de contratar os funcionários que vão cuidar dos presos mais perigosos do país. A lista desses detentos é encabeçada por Fernandinho Beira-Mar, o hóspede número 1 de Catanduvas, a primeira unidade das cinco previstas para serem entregues.

Ao contrário do que acontece na seleção para policiais federais, militares, civis e agentes penitenciários estaduais, os funcionários das “supermax” foram contratados sem que houvesse uma avaliação prévia da sua vida criminal e pessoal. É o que no jargão policial se chama “investigação social”. A Lei 10.693/03, que cria o cargo de agente federal, não coloca a “sindicância” como pré-requisito para a contratação. Nem mesmo o edital o faz.

A chamada para as provas pede ao candidato que entregue a ficha de antecedentes criminais da Justiça, o que possibilita apenas rastrear se o futuro funcionário responde a algum processo. Esta documentação não identifica, por exemplo, inquéritos que o candidato esteja respondendo.

A investigação social, colocada como pré-requisito para a contratação de funcionários que trabalham na segurança pública em todos os níveis, é um trabalho minucioso de coleta de informações. Inclui entrevistas com vizinhos, ex-patrões, rastreamento de inquéritos e até teste toxicológico. É geralmente feito pela equipe de inteligência das polícias.

As equipes trabalham em sigilo enquanto o candidato faz o curso de formação, outra condição para ser contratado. Dura entre dois e três meses e tem caráter eliminatório. Ou seja, caso a polícia encontre algo que desabone ou coloque o candidato sob suspeita, ele não é contratado. Foi assim que ocorreu com um candidato ao cargo de agente no último concurso da PF. Ele foi excluído por ter sido reprovado na avaliação psicológica.

No caso dos agentes penitenciários federais, foi bem diferente. Bastou entregar a ficha de antecedentes criminais, os exames médicos e físico e eles já tomaram posse. “É uma operação de alto risco, uma irresponsabilidade. Quanto se trata de segurança máxima, deve haver o máximo rigor na seleção. Já existem problemas com esse cuidado prévio, imagine sem ele”, afirma o ex-secretário nacional de Segurança Pública coronel José Vicente da Silva. Na última semana, o Ministério da Justiça iniciou o treinamento de 190 agentes penitenciários da segunda turma. Uma parte vai para o presídio de Campo Grande, o segundo a ser inaugurado. “Menina dos olhos” do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, cada penitenciária custou R$ 20 milhões. Até agora, pelo menos 360 agentes já foram contratados. “Não adianta investir em equipamento se não há cuidado com os funcionários que vão atuar nos presídios. Quando se trata de crime organizado, todo cuidado é pouco”, afirma Ignacio Cano, especialista em segurança pública e professor do Núcleo de Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Máfia dos concursos

A brecha na Lei 10.693/03 pode se tornar mais perigosa. A polícia paulista já identificou que o Primeiro Comando da Capital (PCC) custeia cursos de direito para seus integrantes disputarem vagas em concursos federais. Pior: a Polícia Civil do DF interceptou ligações telefônicas entre líderes do PCC e integrantes da máfia dos concursos públicos, desbaratada no ano passado. A facção teria encomendado 10 gabaritos para infiltrar seus integrantes nos presídios federais.

Com a prisão da quadrilha, a seleção foi cancelada, mas novo concurso foi aberto. “A lei é omissa quanto aos requisitos do candidato”, diz o jurista João Antonio Wiegerinck, que analisou o edital do concurso a pedido do Correio. Segundo ele, da forma como está na legislação, o candidato ainda pode entrar com mandado de segurança para se manter no emprego se o Ministério da Justiça encontrar algo que o desabone.

Segundo o coronel Vicente, a investigação prévia dos candidato é aplicada há mais de 50 anos na polícia paulista. No DF, além de fazer a sindicância, a Polícia Civil passou a exigir dos aprovados para agente penitenciário a apresentação de cartas de referência, procedimento aplicado na seleção para juízes. Segundo especialistas, pela investigação é possível identificar o comportamento dos futuros agentes, como por exemplo, agressividade.

EXIGÊNCIAS

Agente penitenciário federal

Provas objetivas

Avaliação psicológica

Prova de capacidade física

Exames médicos

Requisitos:

Certidão negativa de cartórios

Certidões de antecedentes criminais

Declaração de não estar cumprindo sanção por inidoneidade, aplicada por qualquer órgão público

Agente penitenciário do DF

Prova objetivas

Exames biométricos e avalição médica

Prova de capacidade física

Avaliação psicológica

Sindicância de vida pregressa e investigação social

Curso de formação profissional

Delegado, perito, escrivão e agente da Polícia Federal

Provas objetivas e discursivas

Avaliação psicológica

Prova de capacidade física

Exames médicos

Curso de formação profissional

Investigação social e/ou funcional

Exame antidrogas

Fonte: editais de concursos

Lixão atrasa inauguração de unidade no MS 

A inauguração do segundo presídio federal, que está instalado em Campo Grande (MS), ainda depende da construção de um aterro sanitário. A unidade de segurança máxima foi construída ao lado de um lixão, que deve ser desativado. A localização da penitenciária provocou a reação do Ministério Público do estado que exigiu do governo do Mato Grosso e do Ministério da Justiça a retirada do lixão do local para que o presídio fosse liberado. A construção do presídio chegou a ser paralisada diante do impasse jurídico.

Em funcionamento há 17 anos, o depósito recebe, diariamente, 300 toneladas de lixo. Dependendo da temperatura, o lixão exala um cheiro insuportável para quem vive nos arredores, inclusive para os detentos que irão abrigar a unidade de segurança máxima. A licitação para a obra, orçada em R$ 5 milhões e custeada com verba do Ministério das Cidades, já começou. Em recente visita ao estado para liberação de recursos, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciou que a nova penitenciária será inaugurada em outubro.

Outro problema para a liberação da unidade é a concessão pela prefeitura de Campo Grande do habite-se, a autorização oficial de funcionamento. Segundo o prefeito da cidade, Nelsinho Trad Filho (PMDB), o governo estadual ainda precisa cumprir a promessa de repassar ao município o controle da Colônia Agrícola Penal. O presídio de segurança máxima fica a cerca de 15km de Campo Grande, no município de Sidrolândia. O aterro a ser construído ficará em área próxima, mas terá cuidados ambientais inexistentes no lixão.

A previsão do Ministério da Justiça é de que os primeiros presos só sejam transferidos para Campo Grande em janeiro do próximo ano. Até agora, apenas Catanduvas está em funcionamento. Outras três unidades de segurança máxima serão construídas em Mossoró (RN), Porto Velho (RO) e Espírito Santo (local ainda a ser definido).

MJ quer rever legislação

O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, responsável pelos presídios federais, reconhece o problema. Em nota enviada ao Correio, o órgão diz que encaminhou ao Congresso Nacional um novo projeto de lei retificando a legislação atual. Quer incluir a sindicância criminal na seleção dos próximos agentes. Diz ainda que os atuais funcionários estão sendo “investigados” pela PF e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), mesmo após a contratação.

Mas, para especialistas em segurança pública, o problema é que, como já são devidamente contratados, caso a apuração encontre algo suspeito ou que desabone o funcionário, será preciso abrir um processo administrativo para que ele seja demitido. Segundo o MJ, esses processos têm prazo de 60 dias para serem concluídos. “Suspeita não é motivo suficiente para a demissão”, esclarece o jurista João Wiegerinck. Até que o inquérito seja concluído, o agente já terá conhecido bem a segurança máxima dos presídios.

Monitoramento

Em sua defesa, o Depen também diz que a “além do intenso treinamento, a atuação dos profissionais é permanentemente monitorada pelo rígido esquema de segurança do Sistema Penitenciário Nacional, que inclui desde o monitoramento de centenas de câmeras espalhadas nas unidades à gravação de qualquer diálogo que o agente tenha com um detento. Para isso, os agentes são obrigados a utilizar microfones de lapela durante todo o tempo de permanência no presídio”. Antes de irem para os presídios, os agentes são submetidos a cursos de 400 horas/aulas entre disciplinas teóricas e práticas. O treinamento da segunda turma de agentes está sendo feito na Papuda, penitenciária do DF.

Segundo o órgão do MJ, os agentes penitenciários estão sujeitos às mesmas regras aplicadas para os servidores públicos. Ou seja, podem ser demitidos em casos de corrupção ou uso do cargo para tirar vantagem pessoal. Também podem ser afastados, enquanto estiverem cumprindo o estágio probatório de três anos, se apresentarem problemas relacionados à “assiduidade, disciplina e responsabilidade”. “Assim, é impossível que em havendo algum candidato com antecedentes criminais tenha este conseguido aprovação no concurso”, assegura o Depen, em nota.

Clarissa Lima Da equipe do Correio Braziliense 

Colaborou Marcelo Rocha