Imagine a cena: semifinal da Libertadores prestes a começar. O Flamengo, postulante ao título, entra em campo desfalcado de seu principal artilheiro, o atacante Gabigol. Alvoroçados na beira do campo, jornalistas tentam descobrir o mistério por trás da ausência. Após algum corre-corre, o enigma é desvendado: o Flamengo decidiu desviar Gabigol para a vaga de preparador-físico depois que o titular do posto deixou o clube em busca de melhores oportunidades de emprego.

De tão absurdo, o relato soa cômico. Entretanto, algo parecido ocorre rotineiramente na Polícia Federal, um dos órgãos públicos mais admirados pela sociedade brasileira. Lá, os servidores da área meio — agentes administrativos, psicólogos, técnicos em telecomunicações, contadores, e tantos outros profissionais que prestam apoio à atividade policial — não são corretamente valorizados e deixam a instituição para trabalhar em outros locais. Como a PF não funciona sem essas atividades, o órgão desloca policiais altamente treinados e melhor remunerados para esses postos, mesmo que eles não saibam executar o serviço para o qual foram designados.

Tal prática, conhecida como “desvio de função”, compromete, já há alguns anos, a eficiência da PF, mas até o hoje o governo segue de olhos fechados para o problema, apesar dos constantes alertas do SinpecPF, sindicato que representa os servidores administrativos.

Talvez por atuar nos bastidores — nas mais abrangentes áreas, incluindo aí atividades fiscalizatórias, como controle imigratório —, os administrativos acabam esquecidos pelas autoridades, que preferem ganhar as manchetes realizando concursos e ofertando reajustes para a carreira policial, quando é notório que a carência maior está hoje na carreira administrativa.

É bem verdade que a maioria dos policiais condena os desvios, considerando a prática absurda. Mas policiais sem vocação para a função se acomodam, durante anos, em atividades burocráticas, tais como licitações e contratos e gestão de recursos humanos, sem deixar de receber salário e vantagens policiais (como aposentadoria especial) para tanto. Dessa forma, o bom policial acaba punido, pois precisa trabalhar e se arriscar em dobro para compensar a falta que o colega desviado faz na ponta.

Por ser um órgão investigativo que lida com informações estratégicas, a PF não pode se dar ao luxo de terceirizar a maior parte de suas funções. Como encarregar a um profissional sem nenhum vínculo com a instituição a alimentação de bancos de dados ligados às operações policiais mais importantes do país? Como deixar que terceirizados se encarreguem de atividades de fiscalização e de controle? Impossível e ilegal, como já apontou o Tribunal de Contas das União em acórdãos recentes.

Diante disso, só há duas alternativas possíveis para o problema: 1) pagar mais caro e delegar todas as atividades do órgão a policiais; 2) valorizar e fortalecer a carreira administrativa. No FBI, a polícia federal norte-americana, modelo de eficiência para todo o planeta, optou-se pela valorização da carreira administrativa. Lá, além de bem remunerada, ela é mais numerosa que a classe policial. Sem dúvida alguma, é a opção mais lógica e eficiente. Tal qual os craques do futebol, os policiais precisam ser valorizados. Entretanto, devem ficar no campo, enquanto o suporte fica a cargo de uma carreira administrativa forte e prestigiada.

Em tempos em que se discute uma carreira única para a atividade policial, é preciso deixar claro que a atividade dessa não existe sem aquela executada pela carreira administrativa.