Tribunal de Contas da União descobre que funcionalismo de todo o país está sem proteção contra descontos de empréstimos inexistentes feitos por entidades que conseguem acessar a folha de pagamento

Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) que investigou o controle dos descontos em folha de pagamento (empréstimos consignados) dos servidores públicos federais, aprovada ontem em sessão fechada, identificou irregularidades graves, com indícios de ação fraudulenta de uma rede de entidades. Entre as falhas detectadas estão a inclusão de descontos sem autorização do servidor, reinclusão de empréstimos já finalizados, exclusão indevida de consignações, alteração de valores a serem repassados às entidades e falta de controle do fluxo dos financiamentos. O TCU não apurou o valor total das fraudes, mas alerta que cerca de 1,3 mil entidades operam hoje com consignações na folha, movimentando mais de R$ 300 milhões por mês. O resultado da auditoria foi enviado à Polícia Federal para abertura de investigação.

Foram identificados casos de aposentados que tiveram descontos indevidos em folha por até três anos antes de perceber a fraude. Alguns foram enganados por pessoas que se diziam responsáveis pelo recadastramento de servidores. Em outras situações, foram falsificadas as assinaturas de funcionários para assegurar o desconto de um empréstimo fictício. Após a reclamação ao ministério, os descontos eram suspensos. Mas, poucos meses depois, retornavam aos contracheques. Há casos em que até sete entidades diferentes se revezavam nessa operação de entra e sai. Como os descontos eram de valor pequeno, muitos servidores demoraram a descobir que estavam sendo lesados.

O que mais impressionou o ministro relator do processo no TCU, Valmir Campelo, foi a fragilidade do sistema de controle de empréstimos com desconto em folha. “Detectamos que o modelo de consignações não está funcionando corretamente e fizemos recomendações ao Ministério do Planejamento”, afirmou. Ao ser cadastrada e autorizada a efetuar descontos na folha de pagamento do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape), a entidade consignatária recebe senhas para acessar o Siapenet. É a própria instituição que inclui os descontos referentes a supostos produtos e serviços no Siape, utilizando um arquivo no formado tipo texto, transmitido eletronicamente via Siapenet.

Problemas generalizados

Após o processamento desses arquivos, o Siape inclui os descontos válidos na ficha financeira do servidor e rejeita as inválidas. Das 355 reclamações registradas na Secretaria de Recursos Humanos (SRH) do Ministério do Planejamento, cerca de 95% são relativas a descontos indevidos. Segundo a auditoria do tribunal, as análises indicam que os problemas são generalizados em todo o país e que a quadrilha certamente tem acesso a informações restritas dos dados cadastrais das vítimas.

Num processo do Ministério dos Transportes, há indícios de falsificação de assinaturas de 13 aposentados. Problemas semelhantes são relatados em processos do Ministério da Fazenda, do Ministério da Saúde e do Instituto Nacional da Seguridade Social. E inclusão indevida de empréstimos também é citada em processos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Departamento de Polícia Rodoviária Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

A auditoria do TCU foi motivada por problemas de descontos na folha de pagamento em valores superiores aos limites legais ocorridos na gerência regional do Ministério da Fazenda no Amapá em 2004. Servidores criaram esquema para obter vantagens indevidas por meio da exclusão fraudulenta de valores consignados. O esquema foi investigado pela Polícia Federal, na Operação Matriz. O tribunal constatou indícios de que as entidades possuíam “amplo e ilimitado” acesso ao sistema para lançamento de débitos, inclusive consignando, em folha de despesas diferentes das legalmente previstas.

A principal conclusão do tribunal é que não há controles que permitam afirmar que o desconto se dá mediante autorização do servidor. “As falhas nos controles internos da sistemática de consignações em folha de pagamento podem resultar em prejuízo para as três partes envolvidas: consignados (servidores públicos), consignatários (entidades que supostamente concedem empréstimos) e consignantes (órgãos públicos)”. O tribunal recomendou à SRH a suspensão imediata da consignação facultativa em caso de divergência do servidor, registro da autorização do servidor no Siape, necessidade de associações que operarem no Siape serem constituídas exclusivamente por servidores públicos federais e de documentação mínima das entidades.

Questionada ontem pelo Correio, a SRH afirmou, por intermédio da sua assessoria de imprensa, que vem trabalhando para tornar mais segura a relação entre o servidor e o consignatário. “As fraudes denunciadas estão sendo investigadas. O servidor que tem o desconto indevido deixa de ter o desconto em folha. O sistema é absolutamente seguro, mas não impede atos dessa natureza. A SRH recadastrou, no início deste ano, 1.139 entidades consignatárias. Dessas, 134 foram desativadas permanentemente, porque não apresentaram os documentos exigidos pela secretaria. As demais entidades estão dentro das normas, que são rigorosas, e atendem aos servidores”, informou a secretaria. 

Interrupção do desconto indevido demora

Vicente de Paula Rodrigues, servidor aposentado do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), sofreu um desconto indevido em folha durante três anos, a partir de 2004. “Fizeram um empréstimo no meu nome. Mandei requerimento para todo lado, mas não tiravam (o desconto) da folha. Isso é horrível! Mandei ofício para o Dnit, mas não adiantou”, reclama o aposentado, que hoje mora em Sobral (CE). Ele conta que o desconto era pequeno, R$ 29,90 por mês, mas fazia falta. Foi suspenso após abertura de processo no Ministério dos Transportes. Ele afirma não ter sido procurado por nenhuma entidade. “Eles falsificaram a minha assinatura. Depois, mandaram telegrama pedindo para eu enviar documentos. Não mandei mais nada.”

Jacy Vieria Machado, de 80 anos, outro aposentado do DNER, residente em Serra (ES), recebeu a visita de pessoas que se diziam responsáveis pelo recadastramento de servidores aposentados. Depois disso, passou a ter descontos no seu contracheque. Em alguns meses, chegava a R$ 155, numa aposentadoria de R$ 1,3 mil. O total de descontos chegou a R$ 1,28 mil em um ano e poucos meses. Em alguns meses, após as reclamações, as consignações sumiam. Mas apareciam alguns meses após, desta vez por intermédio de outras entidades consignatárias.

O advogado Evilmar Pagani, que cuidou do caso, conta que procurou essas entidades. “Algumas delas não tinham nem endereço. Sempre mudava a entidade. Precisei recorrer à Justiça.” O advogado obteve a informação de que as entidades entravam no sistema do Siape sempre no último dia antes do pagamento, para evitar qualquer checagem. Ele conseguiu o ressarcimento dos descontos por decisão judicial. Antônio Ferreira Gomes, também aposentado pelo DNER, observou logo o desconto de R$ 19 no seu contracheque. A sua assinatura foi falsificada, como conta a mulher, Edeuza Gomes. “Ele não fez nada. Falsificaram a assinatura dele. Mas foram só três meses. Ele fez um requerimento e retiraram da conta. Veio uma carta avisando”, conta Edeuza. 

Lúcio Vaz

Correio Braziliense

2/8/2007