Dezoito anos depois da decisão tomada pelos constituintes de 1988, o Brasil ainda não conseguiu implementar efetivamente o teto e os subtetos salariais do serviço público. A resistência vem do Poder Judiciário, onde prevalece o entendimento de que a garantia constitucional de irredutibilidade de vencimentos se sobrepõe ao teto.

O Poder Executivo, sobre quem recai a cobrança de responsabilidade fiscal, até tenta cumprir o teto sem exceções. Mas não consegue em função de decisões judiciais. No Executivo federal, ainda existem 129 servidores ativos e inativos ganhando mais que o limite aplicável à União, de R$ 24,5 mil, principalmente nas universidades, informa o ministério do planejamento. A maior remuneração entre esses funcionários públicos chega a R$ 38,27 mil.

Devido à interpretação em favor da irredutibilidade, no próprio Judiciário também há gente recebendo acima do teto de R$ 24,5 mil, dado pela remuneração da presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje ocupada pela ministra Ellen Gracie. Embora o prazo tenha terminado em julho, até agora o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem missão constitucional de zelar pelo cumprimento do limite remuneratório, não conseguiu fazer com que todos os tribunais se enquadrassem nas suas resoluções.

Em março deste ano, o CNJ baixou dois atos normativos regulamentando a aplicação do limite, atualmente de R$ 24,5 mil para a União e de R$ 22,11 mil nos Estados. Foram tiradas, assim, muitas dúvidas que davam margem a questionamentos. O consultor legislativo Flávio Freitas Faria, da Câmara dos Deputados, explica que, mesmo valendo só para o Judiciário, as duas resoluções serviram de referência para todo setor público sobre o que deve e o que não deve ser incluído na soma, para efeitos de cumprimento do teto.

Vantagens pessoais como gratificações por tempo de serviço, por exemplo, entram. Já vencimentos decorrentes do exercício do magistério e verbas de caráter eventual, como diárias e bolsas de estudo, estão fora.

As duas resoluções do CNJ deram aos tribunais prazo até julho de 2006 para se adaptar. Esperava-se, assim, que tudo que estava acima do teto ou subteto aplicável a cada um fosse alvo de redução, diz Flávio Faria. Não foi, porém, o que aconteceu, pelo menos não em todo o país. No Rio Grande do Sul e Minas Gerais, por exemplo, os Tribunais de Justiça continuam pagando vencimentos acima do teto, alegando a garantia de irredutibilidade prevista na Constituição.

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) deu o exemplo, ao julgar, em maio, um mandado de segurança impetrado por quatro de seus ministros inativos contra o corte feito em suas aposentadorias em 2004. Revertendo uma decisão administrativa, o STF permitiu que eles voltassem a receber mensalmente mais do que o teto, até que a elevação gradual do limite absorva o valor nominal de um adicional de 20% concedido na época em que se aposentaram.

O limite remuneratório aplicável aos magistrados da Justiça gaúcha é de R$ 22.111,25 mensais atualmente. O montante equivale a 90,25% do subsídio de ministro do STF e corresponde ao máximo admitido nas resoluções do CNJ para os judiciários dos Estados, com base na Constituição Federal. Segundo o TJRS, no entanto, 35 de seus desembargadores da ativa e mais sete aposentados continuam a receber acima desse montante. A assessoria da presidência do tribunal informa que, entre os ativos, os vencimentos superam o teto estadual em R$ 338,00, em média.

Em Minas Gerais, o teto em vigor, fixado por lei estadual, também é de R$ 22.111,25. O presidente do Tribunal de Justiça mineiro, desembargador Hugo Bengtsson Júnior, informou, porém, que “há desembargadores na ativa, em fim de carreira, com mais de 40 ou 50 anos de serviço, e outros, já aposentados, cujos vencimentos ou proventos vão um pouco além” disso. Ele não revelou quantos são, no total, esses magistrados.

Segundo Bengtsson, eventuais definições do tribunal de Minas sobre a adequação ao teto só serão adotadas após manifestação formal do CNJ sobre questões como direito adquirido e irredutibilidade de vencimentos. O conselho deverá se manifestar nos próximos dias, quando acabar a análise dos relatórios encaminhados em julho, por todos os TJs, sobre a situação em cada Estado. O envio dos relatórios foi uma das exigências das resoluções de março.

Em Minas Gerais, não é só o Judiciário que ainda paga vencimentos superiores ao teto estadual. Segundo uma fonte que conhece a situação, o problema se estende ao Tribunal de Contas do Estado, onde haveria conselheiros ganhando mais de R$ 50 mil por mês. Questionado, o órgão, ligado ao Legislativo, não negou a informação, embora não a tenha confirmado de maneira explícita.

Numa atitude avessa ao mínimo de transparência esperado de um tribunal de contas, o presidente do TCE de Minas, conselheiro Eduardo Carone Costa, recusou-se a responder objetivamente às perguntas encaminhadas pelo Valor sobre cumprimento ou não do teto no órgão que preside. Limitou-se a dizer que “cumpre irrestritamente a Constituição, especialmente o respeito ao princípio constitucional da irredutibilidade”.

Devido à pouca ou nenhuma disposição dos dirigentes dos órgãos em dar transparência, a composição da folha de pessoal dos poderes Legislativo e Judiciário nos Estados “é uma caixa preta” que dificulta avaliar o cumprimento do teto salarial, admite o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Administração (Consad), Geraldo Aparecido de Vitto Junior.

 Regras são controversas, apesar de emendas à Constituição

A tentativa de resgatar a intenção dos constituintes de 1988 e limitar salários e aposentadorias pagos pela administração pública já levou o Parlamento brasileiro a mudar duas vezes a Constituição. A primeira alteração veio com a Emenda 19, em junho de 1998. O texto em vigor foi dado pela Emenda 41, em dezembro de 2003.

A versão original da Carta de 1988 estabelecia tetos diferentes para Judiciário, Legislativo e Executivo nas esferas federal e estadual. Mandava adotar como parâmetro a remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal, dos membros do Congresso Nacional e dos ministros de Estado, no caso da União, e a dos cargos correspondentes nos Estados. Nos municípios, o limite era o salário do prefeito.

Na prática, a regra original não funcionou porque a remuneração envolve várias parcelas e houve interpretação generosa do Judiciário sobre quais estariam sujeitas ao teto. “Na época, prevaleceu o entendimento de que vencimentos conquistados em função do histórico funcional individual de cada um estavam fora”, lembra o consultor legislativo Flávio Freitas Faria, da Câmara dos Deputados, um estudioso do assunto.

O problema é que, devido à legislação da época, era justamente a incorporação das vantagens pessoais que gerava salários muito altos na administração pública. Na União, por exemplo, quem ocupava cargo comissionado incorporava para sempre parte ou todo o adicional relativo a esse cargo, mesmo depois de deixá-lo. Passar por diversas chefias, ainda que por pouco tempo, era uma forma de garantir elevação permanente do salário. Combinado com a interpretação que prevaleceu na Justiça, esse foi um dos fatores que tornaram sem efeito, na prática, o teto salarial definido pelos constituintes de 1988.

Em 1998, o parâmetro mudou. A Emenda Constitucional 19 determinou que ministros do STF, desembargadores, detentores de cargos eletivos, ministros de Estado e secretários estaduais e municipais passariam a ser remunerados “exclusivamente por subsídio fixado em parcela única” e não mais em diversas parcelas.

Outra mudança foi a introdução de um teto geral, com o fim da diferenciação por poder e por esfera da administração pública. A nova redação estabeleceu como limite máximo para todo o serviço público o equivalente a subsídio de ministro do STF.

Mesmo atacando o problema das vantagens pessoais, como tentativa de impor o teto salarial, na prática, a Emenda 19 também não funcionou, porque exigiu um consenso que se mostrou difícil, explica o juiz trabalhista Paulo Luiz Schmidt, membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A fixação do subsídio de ministro do STF, lembra ele, dependeria de projeto de lei de iniciativa comum dos presidentes da República, do Senado, da Câmara dos Deputados e do STF, que nunca chegou a ser proposto. “O problema da Emenda 19 foi a exigência da lei quadrúpede combinada com a falta de uma regra de transição”, diz o magistrado.

Em dezembro de 2003, a exigência foi retirada pela Emenda 41, que também restabeleceu subtetos para Estados e municípios. A presidência do STF pôde, então, tomar sozinha a iniciativa de propor ao Congresso o valor a ser pago em parcela única aos membros do tribunal.

Corrigindo outro defeito da Emenda 19, a mudança constitucional de 2003 ainda estabeleceu uma regra provisória. Enquanto o subsídio não fosse fixado, valeria a maior remuneração paga a um membro do STF: na época R$ 19.115,19 (hoje, o subsídio é de R$ 24,5 mil).

A partir daí muitos órgãos públicos fizeram ajustes, inclusive o próprio STF, que cortou remuneração de aposentados. O corte, porém, foi contestado em mandado de segurança. O julgamento desse mandado, em maio, representou um novo marco, ao abrir precedente para que fiquem fora do teto aqueles salários e aposentadorias que já estavam acima dele antes da sua regulamentação.

O juiz Paulo Schmidt ressalta, por outro lado, que essas situações se corrigirão com o tempo, na medida em que o teto for sendo reajustado e absorver o excedente. Afinal, explica ele, o STF também deixou muito claro, no mesmo julgamento, que a parcela que excede ao teto não pode ser objeto de nenhum reajuste. “Fica congelada, pois o que se garantiu foi só a irredutibilidade.” Na sua opinião, é equivocado pensar que voltou-se à situação anterior à Emenda 19, em que vantagens pessoais não eram submetidas ao teto. (MI)

Norma limitada no Legislativo

Nem Senado nem Câmara dos Deputados consideram, para efeitos de cumprimento do teto salarial, quantias recebidas mensalmente pelos parlamentares de outras fontes pagadoras do setor público. Segundo as diretorias das duas Casas, não existe, até hoje, norma legal que lhes permita fazer tal controle. Isso mostra que a completa e efetiva vigência do limite ainda precisa de regulamentação.

No entendimento do juiz Paulo Luiz Schmidt, membro do Conselho Nacional de Justiça e estudioso do tema, o teto salarial deve ser aplicado inclusive para a soma das várias fontes pagadoras, mesmo quando se tratam de órgãos de diferentes esferas da administração pública. Tanto é, destaca ele, que o Judiciário federal já considera outras fontes. Assim, explica, se um magistrado tem aposentadoria como procurador estadual, por exemplo, recebe só a diferença até o teto, caso a soma seja maior.

Como admitiram Câmara e Senado, o mesmo controle não existe, porém, em relação a parlamentares que recebem aposentadorias de Estados ou municípios, a exemplo de ex-governadores, ex-prefeitos e ex-deputados estaduais. Devido a isso, muitos podem estar recebendo acima do teto estipulado em R$ 24,5 mil.

Mônica Izaguirre do Valor Econômico