Ministério Público pede reformulação do sistema de empréstimo consignado aos servidores para impedir abusos dos descontos nos contracheques, respeito ao limite de 30% e inversão do ônus da prova  

A Justiça Federal no Ceará determinou à União que reformule o sistema de empréstimo consignado dos servidores públicos federais no estado. A decisão, tomada no fim de julho, proíbe que o desconto em folha supere a margem de 30% do salário do titular — limite estabelecido pelo decreto 4.961/04 — e transfere para as companhias a responsabilidade de provar que o débito é indevido caso o trabalhador conteste formalmente a cobrança.

A manifestação do Judiciário atende, em parte, a uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) no ano passado e tenta preencher espaços vazios deixados pela legislação. “Temos de aperfeiçoar esse processo”, explica o procurador da República Alessander Sales, que prepara um recurso ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). “Vou pedir nos próximos dias que a decisão seja aplicada em todo o país”, completa. O MPF exigirá ainda que a União reoriente o acesso das empresas de crédito consignado aos contracheques dos servidores. Hoje, com um simples código numérico elas têm acesso ao comprovante de renda e lançam os descontos na folha.

Se passar a valer em nível nacional, a medida ajudará a coibir abusos. Há casos, por exemplo, de consignados que avançam sobre planos de saúde, o que é vedado pela lei. Em sua decisão, a juíza substituta da 8ª Vara, Elise Avesque Frota, ressalta que é “incabível o prejuízo de plano de saúde ou de plano de previdência privada do servidor para a satisfação dos empréstimos em consignação posteriormente contraídos”. No Ceará, uma servidora ouvida pelo MPF disse que teve a assistência médica cancelada e, quando conseguiu reativar o plano, descobriu que precisaria aguardar um prazo de carência para fazer exames médicos.

No Distrito Federal, servidores reclamam também de terem descontos no contracheque referentes a empréstimos que não teriam feito. A decisão judicial do Ceará determina que, sempre que contestados, os débitos terão de ser suspensos imediatamente e caberá à consignatária comprovar que emprestou o dinheiro ao suposto tomador. Atualmente, o servidor precisa recorrer ao órgão de origem, mas nem sempre consegue comprovar que não tomou o dinheiro emprestado. “Minha mãe está aposentada e há quase um ano tenta na Justiça receber o dinheiro que foi descontado indevidamente de um consignado que ela não fez”, afirma um servidor do Ministério da Justiça, que pediu para não se identificar. Assim como em outros casos, a servidora teve o plano de saúde suspenso porque a margem de 30% do salário já havia sido comprometida com a prestação do empréstimo.

A pouca fiscalização das entidades contribui para o avanço das irregularidades. O Tribunal de Contas da União (TCU) já identificou indícios de ação fraudulenta de uma rede de entidades. Entre as falhas detectadas estão os descontos sem autorização do servidor, a cobrança de empréstimos quitados e a exclusão indevida de consignações, conforme mostrou o Correio na semana passada. O TCU encontrou casos de aposentados que tiveram descontos indevidos por até três anos. Outros reclamaram que foram enganados por pessoas que se passaram por intermediários das financeiras.

Relação de comércio

Em nota técnica enviada ao jornal, o Ministério do Planejamento informa que a Secretaria de Recursos Humanos (SRH) “tem trabalhado para que as operações realizadas entre entidades e servidores sejam realizadas de forma segura”. No documento, o ministério faz um histórico de sua atuação junto às companhias e acrescenta que, em 2005, uma auditoria da SRH promoveu o recadastramento das entidades. “Na ocasião, o número de consignatárias era de 1.600. Esse número foi reduzido para 1.340”, reforça o texto.

Ainda de acordo com o ministério, em março de 2007, a mesma secretaria realizou uma nova revisão na lista de empresas, desabilitando junto ao Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (SIAPE) outras 439 consignatárias. “Das 439 entidades, 153 foram desativadas temporariamente (não podem incluir consignações) por ainda estarem em processo de comprovação de documentação exigida pela portaria 279/2007”, continua a nota. Sobre a decisão da Justiça no Ceará, o Ministério do Planejamento não se pronunciou.

Conforme a SRH, em 2006, foram recebidas 355 denúncias contra consignatárias. Já em 2007, o número chega a 170. “Essas denúncias são averiguadas. Quando constatada a irregularidade, a consignatária é automaticamente desabilitada”, justifica o órgão. O ministério esclarece que a relação entre o servidor e consignatária “é uma relação normal de comércio” e que o trabalhador deve exigir um contrato assinado e, se for o caso, recorrer aos mecanismos legais como o Procon e o código de defesa do consumidor. “A relação entre servidor e consignatárias é uma relação entre dois entes privados na qual a SRH não tem o direito de interferir”, finaliza a nota.

CADASTRO POSITIVO

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou ontem em caráter terminativo o projeto que institui a análise de risco positiva no sistema bancário. Com o cadastro, quem tiver histórico de bom pagador, pagará taxas de juros menores. A economia poderá crescer mais, animou-se o deputado Maurício Rands (PT-P), relator da matéria. O assunto agora passa a tramitar no Senado. O cadastro vai forçar maior competição entre os bancos e dará mais poder de negociação aos tomadores de crédito, comemorou o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

Câmara vai apurar falhas no desconto em folha

A Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara vai apurar como atuam as empresas e de que maneira são realizados os empréstimos em folha para servidores federais. O presidente da comissão, Nelson Marquezelli (PTB-SP), disse ontem que todo o processo precisa ser revisto. Os parlamentares preparam uma audiência pública — ainda sem data para acontecer — e pretendem convidar o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, para dar explicações.

Marquezelli acredita que os servidores estão sendo prejudicados porque a lei é frágil. Segundo ele, a fórmula adotada para regulamentar os descontos a aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pode ser utilizada como parâmetro ou até mesmo estendida aos acordos firmados entre as empresas e os funcionários de órgãos federais. “Foi uma boa solução. Do jeito que está é que não pode ficar. É como dar criancinha para o leão comer”, diz. Em maio de 2004, o INSS passou a permitir que aposentados e pensionistas pegassem empréstimos com desconto em folha.

Ao contrário do que ocorre no setor público, porém, onde a única regra é que a parcela mensal não deve exceder 30% da renda do servidor, o INSS impôs uma série de condicionantes. Além do limite consignável, o governo fixou em 60 meses o prazo máximo para quitação da operação. Depois, reduziu o número máximo de parcelas para 36 vezes. Além disso, proibiu os bancos de cobrarem a Taxa de Abertura da Crédito (TAC), que encarecia muito as operações. Foi estabelecido ainda um teto para os juros. Os bancos chegavam a cobrar 4,5% ao mês. Hoje, não podem passar de 2,64%.

Designado pela comissão para organizar a audiência pública e formalizar os convites aos representantes dos servidores, financeiras e órgãos do governo, Tarcísio Zimmermann (PT-RS) afirma que o tomador do empréstimo tem de ser melhor protegido. O deputado acredita que será possível elaborar uma proposta que ajuste a lei em vigor. “O consignado tem de ser visto como um instrumento eventual, não pode ser uma despesa sem fim, quase eterna”, completa. Zimmermann critica as altas taxas de juros aplicadas sobre os empréstimos e diz que é fundamental estipular prazos para o consignado.  

Análise da notícia

Um tiro no escuro

A falta de regras claras e de fiscalização eficiente desvirtuou o crédito consignado para servidores federais. O que deveria ser uma ferramenta saudável e de uso ocasional, virou um grande problema. As falhas no sistema apontam a necessidade de uma revisão urgente da regulação para equilibrar a relação e dar maior segurança para endividados e entidades. O melhor seria redistribuir as responsabilidades entre o tomador do empréstimo, o consignatário e a União.

Enquanto o consignado para o funcionalismo é frágil, o modelo aplicado aos aposentados e pensionistas do INSS representa um avanço. Talvez nem todas as soluções possam ser transportadas para o setor público. Mas não há como negar que, no caso , a regulamentação nesse segmento se impôs aos desajustes do mercado. O rigor nas autorizações para os bancos atuarem, a limitação de prazos para o pagamento das dívidas e o limite dos juros que podem ser cobrados protegem quem recorre ao desconto em folha.

É claro que mais normas nem sempre garantem a lisura total do processo. Algumas práticas irregulares tendem a sobreviver. Agir é um dever dos órgãos fiscalizadores e, infelizmente, hoje eles praticamente não existem. Para os servidores, aderir ao consignado significa um tiro no escuro. Tanta incerteza atrapalha inclusive a imagem das boas empresas que atuam direta ou indiretamente nesse ramo.

Luciano Pires

Correio Braziliense

8/8/2007