Vai ser esquisito se o único a ser punido no caso do dossiê acabar sendo o delegado da Polícia Federal que divulgou as fotos. Hoje o delegado Edmilson Bruno é um homem isolado, respondendo a um procedimento administrativo e a um inquérito policial. Ele disse que se a foto não fosse divulgada também teria impacto político. Tem razão. Em casos assim, quando qualquer ação tem efeito político, o que deve fazer uma corporação que precisa ser neutra?

A melhor opção é seguir as regras. Se em 17 casos do atual governo, como a revista “Época” mostrou, as fotos do dinheiro apreendido foram divulgadas, então o melhor a fazer é repetir o mesmo procedimento. Do contrário, estará havendo uma perigosa captura de um órgão do aparelho de Estado, por um governo. O Estado é permanente, o governo é conjuntura. A Polícia Federal não pertence a nenhum governo ou partido e deve fazer todo o possível para se proteger desse risco.

“O que eu sofro hoje é a pressão da política e não da polícia”, diz o delegado. A PF pode processá-lo, investigar o caso, desmoralizá-lo e exonerá-lo, mas essa frase vai continuar assombrando a instituição e só poderá ser exorcizada se a Polícia Federal se proteger do assédio político e do uso de critérios políticos nos seus procedimentos internos.

Desde o começo esse caso está estranho. Primeiro as fotos não foram divulgadas, como normalmente eram. Segundo, perguntado sobre o assunto, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, deu uma declaração politizada: disse que agora não se fulminam mais candidaturas com a divulgação de fotos, sugerindo que havia um passado de arbítrio, agora superado. Terceiro, o delegado que fez o flagrante, Edmilson Bruno, foi afastado do caso, contrariando procedimentos de qualquer polícia do mundo. Quarto, num ato de desobediência, o delegado Bruno divulga as fotos e virou o único a ser punido, como se o crime tivesse sido a divulgação da foto e não o que a foto revelava.

Para explicar por que tirou as fotos do dinheiro, Bruno disse: “Eu quis evitar uma armadilha que estavam montando contra mim. Pode ser que a armadilha nem acontecesse, mas achei melhor me prevenir.” Ela pode ser só a revelação de um medo desprovido de sentido do delegado, ou pode ser um exemplo do ambiente interno da corporação. Todas as corporações têm grupos de pessoas que se juntam por ter mais afinidade, mas o que o contribuinte não pode tolerar é que a Polícia Federal – sustentada com os impostos de todos – seja fracionada por razões políticas em facções que se desgastam em guerra interna. O delegado se sente perseguido e o que ele fez, inicialmente, foi apenas evitar um delito ao dar um flagrante em compradores e fabricantes de dossiê em plena transação ilícita e com o dinheiro na mão. Dinheiro sem origem, sem declaração, sem dono.

A descoberta dos envolvidos mostrou uma conexão íntima com o Palácio do Planalto e com a campanha da reeleição. A reação do governo foi acusar a imprensa pela divulgação dos fatos e depois entrar na Justiça para tentar impedir a publicação das fotos. Crime passou a ser a divulgação do crime. A normalidade foi restabelecida brevemente pela declaração do próprio presidente da República, na entrevista de anteontem, quando disse: “Se o fato aconteceu tem que ser mostrado. O fato concreto é que aconteceu. Tinha o dinheiro, tinha a fotografia que poderia ter sido mostrada no dia, quando bem entendesse.” Pena que essa visão do presidente não é a mesma que vários dos seus assessores diretos sustentaram.

Outro detalhe intrigante desse episódio é por que o presidente Lula não consegue saciar sua curiosidade. “Fico pedindo a Deus que não me aconteça nada até desvendar esse mistério. Peço a Deus que possa viver até o dia em que puder falar: olha, foi tal pessoa que articulou.” Entre os envolvidos estão: Freud Godoy, seu assistente direto, de décadas; Osvaldo Bargas, velho amigo do ABC e marido da sua secretária particular; Jorge Lorenzetti, que era, quando o fato aconteceu, um dos coordenadores de sua campanha à reeleição e churrasqueiro presidencial nas horas vagas; Valdebran Padilha, Gedimar Passos, todos da sua campanha, e mais o coordenador da campanha do candidato do PT ao governo de São Paulo. Isso sem falar no presidente do partido. Figuras bem terrenas podem saciar a curiosidade presidencial, ele não precisa invocar o Divino.

Por contornar a realidade, o governo se enrolou no episódio e isso produziu efeitos eleitorais, como se viu. Em vez de perseguir o delegado que mostrou a foto que estava escondida por razões políticas, a Polícia Federal deve ir ao ponto: de onde veio o dinheiro apreendido? Qual é a responsabilidade de cada um dos personagens da história?

Nos últimos anos os brasileiros tiveram, em vários momentos, motivos de se orgulhar da Polícia Federal. Ela não deve cometer o erro de confundir Estado com governo. Já há demasiados indícios de que a PF tem feito essa confusão. Se essa história terminar com punição apenas do delegado que deu o flagrante e divulgou as fotos, será a prova definitiva de que a Polícia Federal não entendeu que seu chefe é o contribuinte brasileiro.

Panorama Econômico

O Globo