Relatório reservado da Polícia Federal denuncia que delegados, advogados e empresários presos na Operação Cerol, sexta-feira, tentaram manipular mais de 400 inquéritos sobre desvios de altas somas de dinheiro, principalmente da Previdência Social. O documento mostra que boa parte dos beneficiários da atuação da organização seria cliente do escritório do advogado Michel Assef.

“Houve um específico interesse no redirecionamento de todos os mais de 400 inquéritos referentes a não-recolhimento de contribuições previdenciárias por parte de empresas”, informa o relatório reproduzido pela juíza federal Ana Paula Vieira de Carvalho. Segundo o documento, delegados e advogados direcionavam inquéritos para controlar as investigações.

Eles teriam tentado assumir o controle até mesmo de inquéritos conduzidos pela Força Tarefa Previdenciária, composta por um grupo de delegados e procuradores da República. A partir da manobra, os acusados faziam “acertos com os investigados, através de investigações lenientes, diligências protelatórias, apurações propositadamente deficientes ou mesmo pedidos de arquivamento”. O relatório menciona a atuação do grupo sobre várias investigações.

O relatório revela que a organização tentou até envolver o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e o candidato ao governo do Rio pelo PMDB, Sérgio Cabral Filho, num lobby para impedir que os delegados José Milton Rodrigues — este preso sexta-feira — e Roberto Prel fossem afastados do comando da PF no Rio. Não há informação, porém, se a organização conseguiu efetivamente fazer o lobby. Com base nessas e em outras informações, a Justiça Federal do Rio decretou a prisão de José Milton e mais 16 supostos integrantes da organização — sendo seis delegados, um agente e um escrivão da PF.

Interesse numa lista de nomes

Segundo o relatório, no dia 26 de janeiro deste ano, o advogado Tarcísio Pelúcio disse ao empresário Paulo Henrique Villela Pedras que tentaria descobrir com “o chefe”, José Milton Rodrigues, à época superintendente da PF no Rio, quais pedidos de abertura de inquérito teriam chegado ã Delegacia de Crimes Financeiros (Delefin). “Pelúcio tinha especial interesse em uma lista de nomes que estaria na Delefin para apuração onde seriam mencionadas centenas de pessoas físicas e jurídicas (…)”, diz o documento.

Duas semanas depois, o delegado Paulo Sérgio Baltazar, apontado como integrante da organização, chama para si 44 inquéritos. O documento não deixa claro se os investigados sabiam das manobras supostamente fraudulentas de advogados e delegados. Baltazar está entre os 17 presos da Cerol. Num outro trecho, o relatório sustenta que o delegado Jairo Kullman, outro ex-superintendente da PF preso na operação, teria permitido que advogados preparassem as respostas de uma carta precatória.

“Há indícios robustos de que não só as datas foram combinadas com o referido delegado, mas também as respostas às perguntas da precatória foram levadas prontas pelo advogado”, informa a PF. Os investigadores sustentam ainda que o interrogatório dos quatro executivos não durou uma hora. Mais tarde, em troca dos supostos favores, Kullman teria recebido “presentes finíssimos”.

Procurado, Renan Calheiros não foi encontrado. A assessoria de Márcio Thomaz Bastos disse que não tinha condições de responder as denúncias ontem, mas que dificilmente um pedido desses teria chegado a ele. Por meio de sua assessoria, Sérgio Cabral disse que nunca foi procurado para interferir em qualquer assunto dessa natureza.

A Operação Cerol

Coordenada pela Diretoria de Inteligência Policial da Polícia Federal de Brasília, mobilizando 240 policiais federais de Paraná, São Paulo e Minas Gerais, a Operação Cerol, voltada para o combate à corrupção nos quadros internos das forças de segurança, começou na sexta-feira com a prisão de seis delegados no Rio e mais 11 pessoas, incluindo empresários, advogados e um fiscal do INSS.

8 POLICIAIS FEDERAIS: Os ex-superintendentes da PF no Rio José Milton Rodrigues e Jairo Helvécio Kullman, os delegados Mauro de Miranda Montenegro (Aeroporto Internacional do Galeão), Jorge Maurício Mendes de Almeida (Deleprev), Paulo Sérgio Vieira Cavalcante Mendes Baltazar (Delefin) e Daniel Leite Brandão (Delegacia de Combate aos Crimes Financeiros), o escrivão Álvaro Andrade da Silva (Delegacia Fazendária) e o agente federal Antônio Xavier Mendes.

4 ADVOGADOS: Monclar Eugênio Gama, Mario Roberto Affonso de Almeida, Patrícia Esteves de Pinho e Tarcísio de Figueiredo Pelúcio.

4 EMPRESÁRIOS: Mario Jorge Campos Rodrigues, Paulo Henrique Vilela Pedras, Renato de Paula Almeida e Jorge Antonio Duarte Delduque.

FISCAL DO INSS: Clóvis Maurício Alves

Documento relata conversas sobre tráfico de mulheres e até disputa por mulata

Policiais, advogados e empresários presos pela Operação Cerol na sexta-feira não se limitavam a manipular inquéritos sobre crimes financeiros. Relatório reservado da inteligência da PF acusa o grupo também de usar informações privilegiadas para prejudicar concorrentes. Nas conversas gravadas com autorização judicial, integrantes da organização falam sobre assassinatos, prisões, tráfico internacional de mulheres e até sobre uma curiosa disputa entre a Scala e a Plataforma, duas casas noturnas do Rio, pelo passe de uma mulata, avaliado em R$ 8 milhões.

Nos diálogos, os integrantes da organização usam linguagem cifrada, e as vezes pornográfica, para tramar contra alguns concorrentes. Numa das conversas, o advogado Monclar Gama, do escritório de Michel Assef, e o escrivão Álvaro Andrade da Silva, falam sobre a prisão de um empresário. A conversa foi gravada gravada às 14h34m do dia 11 de agosto de 2005.

— A parada é o seguinte, aquele corno que tu prendeu, o que é que tu tem dele aí, tem auto de prisão em flagrante? — pergunta Gama.

O escrivão responde afirmativamente. Momentos depois, Monclar diz que o empresário teria tentado intermediar o contrato de uma mulata com a Plataforma. Como o negócio não se concretizou, o empresário teria levado a mulata para dançar no Scala e baixou o preço da entrada na boate para R$ 30. A Plataforma teria, então, resolvido receber a dançarina. “Mas aí o empresário pediu dois milhões, mais oito mil dólares por mês”, disse Monclar.

Conversas com o delegado Daniel Brandão citada no relatório Numa outra conversa, Monclar e Alvaro conversam com o delegado Daniel Brandão sobre o mesmo assunto. “Brandão diz: ‘nós vamos f. eles. Delegado quer pau que nem pica-pau, adora comer carne, salada’. Monclar ri e diz que foi o dono do Plataforma, com aquele Alberico, que é o manager lá de dentro, e passou a tarde lá cuspindo labareda. E um policial não identificado retruca: ‘eu vou prender eles também’. Brandão diz: ‘me dá aí o CNPJ da Plataforma’, descrevem os investigadores no relatório usado pela Justiça Federal para decretar a prisão dos 17 acusados.

Advogados também fizeram lobby por Medalha Tiradentes

O relatório reservado também mostra que policiais e advogados fizeram lobby para que a Assembléia Legislativa do Rio concedesse a Medalha Tiradentes ao diretor-executivo da PF Zulmar Pimentel. A idéia do grupo seria ser aproximar a cúpula da instituição e, com isso, se manter em cargos chaves. Os parlamentares atenderam ao pedido e Pimentel aceitou a homenagem. Mas, na semana passada, Pimentel viajou ao Rio para comandar pessoalmente a prisão dos falsos aliados. Delegados e advogados da organização também tentaram se aproximar do superindente da PF Delci Carlos Teixeira, que substituíra José Milton no cargo. O grupo teria sido orientado por José Milton a chamar Teixeira para beber. “Pelúcio diz que José Milton já o alertou que o cara é f., falando que a única coisa boa que ele tem é o que ele gosta de um mézinho”. A estratégia também não deu certo.

Jailton de Carvalho / O Globo